Zé Bebelo: Seleção de trechos do romance


ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.




Raposa que demorou

Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. (...) Com Zé Bebelo, oi, o rumo das coisas nascia inconstante diferente, conforme cada vez (1994, p.16/p. 98).


Seguro já nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão.

Zé Bebelo – ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a natureza dá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo, dispor de tudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto. Seguro já nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão. Trepava de ser o mais honesto de todos, ou o mais danado, no tremeluz, conforme as quantas. Soava no que falava, artes que falava, diferente na autoridade, mas com uma autoridade muito veloz. (...) Senhor ouve e sabe? Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homem consegue intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não pode (1994, p.99).


O passado, para ele, era mesmo passado, não vogava.

No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dançava as danças, exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou topava à vara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviava musical. (...) Sem menos, se entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse: choveu, louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol. Gostava, com despropósito, de dar conselhos. Considerava o progresso de todos – como se mais esse todo Brasil, territórios – e falava, horas, horas. – “Vim de vez!” – disse, quando retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, não vogava. E, de si, parte de fraco não dava, nenhão, nunca (1994, p.100).



“Viva a lei! Viva a lei!...”

Ah, mas, com ele, até o feio da guerra podia alguma alegria, tecia seu divertimento. Acabando um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão, perseguir quem achasse, só aos brados: – “Viva a lei! Viva a lei!...” – e era o pipoco-paco. Ou: – “Paz! Paz!” – gritava também; e bala: se entregaram mais dois. – “Viva a lei! Viva a lei!...” Há-de-o, que quilate, que lei, alguém soubesse? Tanto aquilo, sucinto, a fama correu. Dou-lhe qual: que, uma vez, ele corria a cavalo, por exercício, e um veredeiro que isto viu se assustou, pulou de joelhos na estrada, requerendo: – “Não faz vivalei em mim não, môr-de-Deus, seu Zebebel’, por perdão...”. (...) Esse era ele. Esse era um homem. Para Zé Bebelo, melhor minha recordação está sempre quente pronta. Amigo, foi uma das pessoas nesta vida que eu mais prezei e apreciei. (1994, p.101)


Ele era imediatamente estúrdio

Ele era imediatamente estúrdio, vestido de brim azul e calçando botas amareladas. Era nervoso, magro, um pouco mais para baixo do que o tamanho mediano, e com braços que pareciam demais de compridos, de tanto que podiam gesticular. Fui indo, ele veio vindo, o grande revólver na cintura; um lenço no pescoço dele esvoaçava. E aquele cabelo bom, despenteado alto, topete arrepiadinho. (...)Adiado eu disse: – “Sou o moço professor...” A alegria dele, me ouvindo, foi estupefacta. Me ferrou do braço, com porção de falas e agrados, subiu a escada comigo, me levou para um quarto, lá dentro, ligeiro, parecia até que querendo me esconder de todos. Uma doidice, de quê? Ah, mas, ah – esse quem era – o homem? Zé Bebelo. A fixe de fato, tudo nele, para mim, tirava mais para fora uma real novidade (1994, p.173).

  
O que ele queria era botar na cabeça o que os livros dão e não.

Disse ao senhor? – eu estava pensando que ia dar escola para os filhos dum fazendeiro. Engano. O comum, com Zé Bebelo, virava diferente adiante, aprazava engano. Estudante sendo ele mesmo. Me avisou. Quis antever os cadernos, livros, pegar com as mãos. Assim ler e escrever, e as quatro contas, ele já soubesse, consumia jornais. Remexeu, tarabuz, e tudo foi arrumando na mesa grande do quarto, senhor-jesus-cristo que assoviava, o cantarolado. Mas – e aí comigo falou sério – naquilo se tinha de sungar segredo: eu visse. – “Vamos constar é que estou assentando os planos! Você fica sendo meu secretário.” Nesse mesmo ido dia, a gente começou. Aquele homem me exercitou tonto, eh, ô, me fino fiz. Ânsia assim e anfa, e poder de entender demais, nunca achei quem outro. O que ele queria era botar na cabeça, duma vez, o que os livros dão e não. Ele era a inteligência! Vorava. Corrido, passava de lição em lição, e perguntava, reperguntava, parecia ter até raiva de eu saber e não ele, despeitos de ainda carecer de aprender, contra-fim. Queimava por noite duas, três velas. Ele mesmo falava: – “Relógio não vou olhar. Aí estudo, estudo, até que estico um cochilão. Cochilão me vem: então espairo o livro, e
me deito, que me durmo” (1994, p.175).


Zé Bebelo se tinha senhoreado de reter tudo, sabia muito mais do que eu mesmo soubesse

De dia, estávamos debulhando páginas, e de repente se levantava ele, chegava na janela, apitava num apito, ministrava aquela brama de ordens: dez, vinte executações duma vez. O pessoal corria, cumpriam; aquilo semelhava um circo, bom teatro. Mas, com menos de mês, Zé Bebelo se tinha senhoreado de reter tudo, sabia muito mais do que eu mesmo soubesse. Aí, a alegria dele ficou demasiadamente. Sobrevinha com o livro, me fazia de queima-cara um punhado de perguntas. Ao tanto eu demorava, treteava no explicar, errando a esmo, caloteava. Ai-ai-ai d’ele atalhar as minhas palavras, mostrar no livro que eu estava falso, corrigir o dito, me dar quinau. Se espocava às gargalhadas, espalmava mão, expendia outras normas, próprias de sua idéia lá dele – e sendo feliz de nessas dificuldades me ver, eu a ignorante, esmorecido e escabreado. Só aí, digo, foi que ele ficou gostando de mim. Certo. Me deu um abraço, me gratificou em dinheiro, me fez firmes elogios – “Siô Baldo, já tomei os altos de tudo! Mas carece de você não ir s’embora, não, mas antes prosseguir sendo o secretário meu... Aponto que vamos por esse Norte, por grandes fatos, que você não se arrependerá...” – me disse – “... Norte, más bandas.” Soprou, só; enche que ventava (1994, p.175).

  
José Rebelo Adro Antunes

Ah, Zé Bebelo era o do duro – sete punhais de sete aços, trouxados numa bainha só! Atirava e tanto com qualquer quilate de arma, sempre certeira a pontaria, laçava e campeava feito um todo vaqueiro, amansava animal de maior brabeza – burro grande ou cavalo; duelava de faca, nos espíritos solertes de onça acuada, sem parar de pôr; e medo, ou cada parente de medo, ele cuspia em riba e desconhecia. Contavam: ele entrava de cheio, pessoalmente, e botava paz em qualquer rutuba. Ô homem couro-n’água, enfrentador! Dava os urros. E mesmo, para ele, parecia não ter nada impossível. (...) “O único homem-jagunço que eu podia acatar, siô Baldo, já está falecido... Agora, temos de render este serviço à pátria – tudo é nacional!” Esse que já tinha morrido, que ele falava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras, de redondeante fama. Se dizia, tinha estudado a vida dele, nos pormenores, com tanta devoção especial, que até um apelido em si se apôs:  Bebelo; causa que, de nome, em verdade, era José Rebelo Adro Antunes (1994, p.177).


Só eu que sou capaz de fazer e acontecer

Ao quando falava, com fogo que puxava de si, Zé Bebelo tinha de se esbarrar, ia até na varanda ou na janela, a apitar o apito, ditar as boas ordens. Daí, mais renovado, voltava para perto de mim, repunha: – “Ah, cujo vou, siô Baldo, vou. Só eu que sou capaz de fazer e acontecer. Sendo porque fui eu só que nasci para tanto!” Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas. Começava por aí, durava um tempo, crescendo voz na fraseação, o muito instruído no jornal. Ia me enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa (1994, p.178).


“Onde é que já se viu homem valer, se não tem à mão estadas raparigas?”

E ele me apresentava com a honra de: Professor Riobaldo, secretário sendo. Nas folgas vagas, eu ia com os companheiros, obra de légua dali, no Leva, aonde estavam arranchadas as mulheres, mais de cinqüenta. Elas vinham vindo, tantas, que, quase todo dia, mais tinham de baratear. Não faltava esse bom divertir. Zé Bebelo aprovava: – “Onde é que já se viu homem valer, se não tem à mão estadas raparigas? Ond’é?” Mesmo cachaça ele fornecia, com regra. – “Melhor, se não eles por si providenceiam, dão logo em abusos, patuléias...” – isto explicava. Demais, de tudo ali se prazia fartura confortável! Abastada comida, armamento de primeira, monte de munição, roupas e calçados para os melhores. E o cobre para semanal de pagamento, pois nenhum daqueles homens estava ali por amor-de-deus, mas ajeitando seu meio de viver. Diziam que era dinheiro do cofre do Governo. Parecia (1994, p.179).


“Você deve de citar mais é em meu nome, o que por meu recato não versei. E falar muito nacional...”

Eu tinha ficado com ruma de foguetes, para soltar, e foi festa. Zé Bebelo mandou dispor uma tábua por cima de um canto de cerca, conforme ele ali subiu e muito falou. Referiu. Para lá do Rio Pacu, no município de Brasília, tinham volteado um bando de jagunços – o com o valentão Hermógenes à testa – e derrotado total. Mais de dez mortos, mais de dez cabras agarrados presos; infelizmente só, foi que aquele Hermógenes conseguira de fugir. Mas não podia ir a longe! Ao que Zé Bebelo elogiou a lei, deu viva ao governo, para perto futuro prometeu muita coisa republicana. Depois, enxeriu que eu falasse discurso também. Tive de. – “Você deve de citar mais é em meu nome, o que por meu recato não versei. E falar muito nacional...” – se me se soprou. Cumpri. O que um homem assim devia de ser deputado – eu disse, encalquei. Acabei, ele me abraçou (1994, p.182).


O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente.

Daí, quando se estava no depois do almoço, vieram cavaleiros nossos, tangendo o troço de presos. Senti pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase todos sujos de sangues secos – se via que não tinham esperança nenhuma decente. Iam de leva para a cadeia de Extrema, e de lá para outras cadeias, de certo, até para a da Capital. Zé Bebelo, olhando, me olhou, notou moleza. – “Tem dó não. São os danados de façanhosos...” Ah, era. Disso eu sabia. Mas como ia não ter pena? O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente (1994, p.182).
  

O senhor sabe, se desprocede: a ação escorregada e aflita, mas sem sustância narrável.

Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade. Debelei que descuidassem de mim, restei escondido retardado. Vim-me. Isso que, pelo ajustado, eu não carecia de fazer assim. Podia chegar perto de Zé Bebelo, desdizer: – “Desanimei, declaro de retornar para o Curralim...” Não podia? Mas, na hora mesma em que eu a decisão tomei, logo me deu um enfaro de Zé Bebelo, em trosgas, a conversação. Nem eu não estava para ter confiança nenhuma em ninguém. A bem: me fugi, e mais não pensei exato. Só isso. O senhor sabe, se desprocede: a ação escorregada e aflita, mas sem sustância narrável (1994, p.185). 


“Eu sou seu igual. Dê respeito!”

Tinha sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens. Mas, mesmo assim, Zé Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima a baixo. Daí disse: “Dê respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o grande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!” (1994, p.355).


“... É, é o mundo à revelia!...”

“... É, é o mundo à revelia!...” – isso foi o fecho do que Zé Bebelo falou. E todos que ouviram deram risadas. Assim isso. Toleimas todas? Não por não. Também o que eu não entendia possível era Zé Bebelo preso. Ele não era criatura que se prende, pessoa coisa de se haver às mãos. Azougue vapor... (1994, p.355).

  
“Toda hora eu estou em julgamento.”

– “Toda hora eu estou em julgamento.”(...) Assim Zé Bebelo respondeu. Aquilo fazia sentido? Mas ele não estava lorpa nem desfeliz, bom para a forca. Que até capivara se senta é para pensar – não é para se entristecer. E rodou aprumada a cara, vistoriando as caras de tantos homens. Ar que inchou o peito e o queixo levantou, valendo se valendo. Criatura assim sente tudo adivinhado, de relâmpago, na ponta dos olhos da gente. Eu tinha confiança nele (1994, p.362).


“Da terra é é a minhoca – que galinha come e cata: esgaravata!”

Joca Ramiro não reveio logo. Mexeu com as sobrancelhas. Só, daí:

– “O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei...”

– “Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foi novo...”

– “O senhor não é do sertão. Não é da terra...”

– “Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é é a minhoca – que galinha come e cata: esgaravata!” (1994, p.364).



Disse: vai remexer o mundo!

– “Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais baixo do que alto, não é velho, não é moço... Homem branco... Veio de Goiás... O que os outros falam e tratam: `Deputado’. Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... – ‘Estávamos em jejum de briga...’ – ele mesmo disse. Ele e seus cinco deram fogo feito feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexer o mundo! Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... Desceram... Nem cavalo eles não têm...” (1994, p.117).


“Vim por ordem e por desordem”

De chapéu desabado, avantes passos, veio vindo, acompanhado de seus cinco cabras. Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto Urucuia. Catrumanos dos gerais. Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras. (...) Os urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelo rodeou todos, num mando de mão, e declarou forte o seguinte: “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!...” Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente quisesse brigar, aquele homem era em frente, crescia sozinho nas armas. (1994, p.118/119)


Sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer nó.

Assuntos principais, Zé Bebelo fazia lição, e deduzia ordens. – “Trabucar duro, para dormir bem!” – publicava. Gostadamente: – “Morrendo eu, depois vocês descansam...” – e ria: – “Mas eu não morro...” Sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer nó. E – engraçado dizer – a gente apreciava aquilo. Dava uma esperança forte. Ao um modo, melhor que tudo é se cuidar miudamente trabalhos de paz em tempo de guerra (1994, p.123).


Com pouco, sabia mais do que nós juntos todos.

Todos tinham de expor o que sabiam daquele gerais território: as distâncias em léguas e braças, os vaus, o grau de fundo dos marimbus e dos poços, os mandembes onde se esconder, os mais fartos pastos. Como Zé Bebelo simplificava os olhos, e perguntando e ouvindo avante. Às vezes riscava com ponta duma vara no chão, tudo representado. Ia organizando aquilo na cabeça. Estava aprendido. Com pouco, sabia mais do que nós juntos todos (1994, p.124).


Zé Bebelo Vaz Ramiro!

“Menininhos, responsabilidade de cangalhas em vocês, carregando a nossa munição!” – Zé Bebelo mandou. Mas, montado, declarou: – “Meu nome d’ora por diante vai ser ah-ohaho de Zé Bebelo Vaz Ramiro! Como confiança só tenho em vocês, companheiros, meus amigos: zé-bebelos! A vez chegou: vamos em guerra. Vamos, vamos, rebentar com aquela cambada de patifes!...” Saímos, solertes entes (1994, p.126).


Zé Bebelo só tinha graça para mim era na beira dos acontecimentos

Digo que, no cível trivial, Zé Bebelo me indispunha com algum enjôo. A antes uma conversa com Alaripe, somente simples, ou com o Fafafa, que estimava irmãmente os cavalos, deles tudo entendia, mestre em doma e em criação. Zé Bebelo só tinha graça para mim era na beira dos acontecimentos – em decisões de necessidade forte e vida virada – horas de se fazer. O traquejar. Se não, aquela mente de prosa já me aborrecia (1994, p. 444).


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