ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
Cavalgada - Carybé
O diabo existe e não existe
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto de especular idéia. O diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso... (2001, p. 26).
O diabo na rua, no meio do redemunho...
Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum - é o que digo. O senhor aprova? (...) Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens, até nas crianças - eu digo. (...) E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho... (2001, p. 26).
(...) Melhor, se arrepare: pois num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca doce pode de repente virar azangada - motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas - vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. (...) Arre, ele (o demo) está misturado em tudo (2001, p. 27).
O razoável sofrer e a alegria do amor
Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor - compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois - e Deus, junto. Vi muitas nuvens (2001, p. 27).
Sobre a maldade gratuita
O senhor não duvide - tem gente, nesse aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... (2001, p. 28).
Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.
Compadre meu Quelémem sempre diz que eu posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons espíritos me protegem. Ipe! Com gosto... Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! (2001, p. 31).
Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas
Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente - dá susto de saber - e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida de só religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido (2001, p. 31).
Reza é que sara da loucura.
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim, é pouca, talvez não me chegue. (...) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. (...) Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégio, invariável (2001, p. 32).
Querer o bem com demais força, de incerto jeito
Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério - foi Medeiro Vaz (2001, p. 33).
A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio
Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não substrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio - essa é a regra do rei! (2001, p. 39).
As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior (2001, p. 39).
Diadorim é a minha neblina
De mim, pessoa, vivo para a minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina... (2001, p. 40).
Alma tem de ser coisa inteira supremada, muito mais do de dentro
(...) Vender sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa inteira supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal. (...) Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só feito meninio. (...) Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível (2001, p. 41).
O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade?
Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração... (2001, p. 43).
Serra do Cafundó: início de uma geografia imaginária
Na Serra do Cafundó - ouvir trovão de lá, e retrovão, o senhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, de medo mau em ilusão, como quando foi menino. O senhor vê vaca parindo em tempestade. De em de, sempre, Urucúia acima, o Urucúia - tão as brabas vai... Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre torta. A serra faz ponta. (...) Hem? O senhor? Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatú moreno; meu, em belo, é o Urucúia - paz das águas... É vida! (2001, p. 43).
Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza
Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros – porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si. De nós dois juntos, ninguém nada não falava. Tinham a boa prudência. Dissesse um, caçoasse, digo – podia morrer. Se acostumavam de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam. E estávamos conversando, perto do rego – bicame de velha fazenda, onde o agrião dá flor. Desse lusfús, ia escurecendo. Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma brisbisa. O ianso do vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um delém que me tirava para ele – o irremediável extenso da vida. Por mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto (2001, p. 45).
Ódio com paciência; o senhor sabe?
(...) Diadorim dizia. - "Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros não forem bem acabados..." E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado. Ódio com paciência; o senhor sabe? (...) E aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim - mas não como ódio, mas em mim virando tristeza. Enquanto os dois monstros vivessem, simples Diadorim tanto não vivia (2001, p. 46).
Medeiro Vaz era homem sobre o sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras
Com o comando de Medeiro Vaz, dali depois daquele carecido repouso, a gente revirava caminho, ia em cima dos outros - deles! - procurando combate. Munição não faltava. Nós estávamos em sessenta homens - mas todos cabras dos melhores. Chefe nosso, Medeiro Vaz, nunca perdia guerreiro. Medeiro Vaz era homem sobre o sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele decidia a confiança de obediência. (...) Se ele em honrado juízo achasse que estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas. Desde o começo, eu apriciei aquela fortaleza de homem. O segredo dele era de pedra (2001, p. 47).
Ah, a mangaba boa só se colhe já caída no chão, de baixo... Nhorinhá
Digo: outro mês, outro longe – na Aroeirinha fizemos paragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de vermelho, se ria. – “Ô moço da barba feita...” – ela falou. Na frente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes, mostrava em fio. Tão bonita, só. Eu apeei e amarrei o animal num pau da cerca. Pelo dentro, minhas pernas doíam, por tanto que desses três dias a gente se sustava de custoso varar: circunstância de trinta léguas. Diadorim não estava perto, para me reprovar. De repente, passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros, que tocavam um boi preto que iam sangrar e carnear em beira d’água. Eu nem tinha começado a conversar com aquela moça, e a poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num grosso rojo avermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de mulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo – alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa só se colhe já caída no chão, de baixo... Nhorinhá. Depois ela me deu de presente uma presa de jacaré, para traspassar no chapéu, com talento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar uma estampa de santa, dita meia milagrosa. Muito foi (2001, p. 50).
Esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe - pra lá, pra lá, nos ermos
Mãe dela chegou, uma velha arregalada, por nome de Ana Duzuza: falada de ser filha de ciganos, e dona adivinhadora da boa ou má sorte da gente; naquele sertão essa dispôs de muita virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, e até – contanto que fosse para os homens de fora do lugarejo, jagunços ou tropeiros – não se importava, mesmo dava sua placença. Comemos farinha com rapadura. E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda o liso do Sussuarão. (...) Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuarão, é o mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem excrementos. Não tem pássaros (2001, p. 49/50).
Diadorim era assim: matar, se matava – era para ser um preparo. O Judas algum? – na faca!
Truco que, de repente, do lado mais impossível, a gente fosse surgir de sobrevento, soflagrar aqueles desprevenidos... Eu escutei, e perfiz até um arrepio. Mas Diadorim, de vez mais sério, temperou: – "Essa velha Ana Duzuza é que inferna e não se serve... Das perguntas que Medeiro Vaz fez, ela tirou por tino a tenção dele, e não devia de ter falado as pausas... Essa carece de morrer, para não ser leleira..." (...) Ouvi mal ouvi. Me vim d’águas frias. Diadorim era assim: matar, se matava – era para ser um preparo. O Judas algum? – na faca! (...) Eu não tive solércia de contradizer. As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim. A razão dele era do estilo acinte. (...) Mas, de seguinte, eu pensei: se matarem a velha Duzuza, pelo resguardar o segredo, então é capaz que matem a filha também, Nhorinhá... então é assassinar! Ah, que se puxou de mim uma decisão, e eu abri sete janelas: – "Disso que você disse, desconvenho! Bulir com a vida dessa mulher, para a gente dá atraso..." – eu o quanto falei. Diadorim me adivinhava: – "Já sei que você esteve com a moça filha dela..." – ele respondeu, seco, quase num chio (2001, p. 52).
Todo o mundo, então, todos, tinham de viver honrando a figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso Senhor, o exato?!
Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de dentro, mas repeli esses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e eu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre as duas palmas. – “Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste confim de gerais?!” – ele baixo exclamou. E tive ira. – “Dou!” – falei. Todo o mundo, então, todos, tinham de viver honrando a figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso Senhor, o exato?! E por aí eu já tinha pitado dois cigarros. Ser dono definito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava: (...) – "Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai..." – ele disse – não sei se estava pálido muito, e depois foi que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais perto de mim (2001, p. 54).
Criatura gente é não e questão, corda de três tentos, três trancos.
Que Diadorim fosse o filho, agora de vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foi declarar: – Redigo, Diadorim: estou com você, assente, em todo sistema, e com a memória de seu pai!... Mas foi o que eu não disse. Será por quê? Criatura gente é não e questão, corda de três tentos, três tranços. – “Pois, para mim, pra quem ouvir, no fato essa Ana Duzuza fica sendo minha mãe!” – foi o que eu disse. E, fechando, quase gritei: – “Por mim, pode cheirar que chegue o manacá: não vou! Reajo dessas barbaridades!..." (2001, p. 54).
Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade.
“Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que era a dela...” (...) Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser.Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre madrugar e amanhecer (2001, p. 57).
O Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade – feito pessoa!
Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os olhos, para não reter os horizontes, que trancados não alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade – feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e ir, vir – e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existido doidante, só agora pior, se destapava – era o que eu tinha rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves – iam como o costume – sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio desistido por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando – só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Água não havia. Capim não havia (2001, p. 67) .
Dia da gente desexistir é um certo decreto – por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê.
De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu variava? (...) Eu via, queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara. O senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma moita, um pé de parede pra ele se retrasar? Eu ambicionava o suíxo manso dum córrego nas lajes – o bom sumiço dum riacho mato a fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arejo. Gritavam contra a gente, cada um asia sua sombra num palmo vivo d’água. O melhor de tudo é a água. No escaldado... "Saio daqui com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com Otacília!" – eu jurei, do proposto de meus todos sofrimentos. Mas mesmo depois, naquela hora, eu não gostava mais de ninguém: só gostava de mim, de mim! Novo que eu estava no velho do inferno. Dia da gente desexistir é um certo decreto – por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê (2001, p. 68).
Medeiro Vaz, então – por primeira vez – abriu dos lados as mãos, de nada não poder fazer; e ele esteve de ombros rebaixados.
“Nós temos de voltar, chefe?" – Diadorim solicitou. Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente sofreasse. Tom bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outro querer, a não ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então – por primeira vez – abriu dos lados as mãos, de nada não poder fazer; e ele esteve de ombros rebaixados. Mais não vi, e entendi. Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Mas era mesmo o final de se voltar, Deus me disse. E – o senhor mais saiba – de supeto já eu estava remoçado, são, disposto! Todos influídos assim. Pra trás, sempre dá o prazer. Diadorim apalpou meu braço. Vi: os olhos dele marejados. Mor que depois eu soube – que, a idéia de se atravessar o Liso do Sussuarão, ele Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado (2001, p. 69).
Confiança – o senhor sabe – ela rodeia é o quente da pessoa.
Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfrega. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota – quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava a ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa (2001, p. 72).
Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato...
Diadorim me espreitava de longe, afetando a espécie de uma vagueza.
Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato...
Fui fogo, depois de ser cinza. Ah, algum, isto é que é, a gente tem de vassalar. Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para poder saber que estes gerais são formosos (2001, p. 72).
Muitos meses se passaram, sem que houvesse combate contra o bando do Hermógenes, e os jagunços, no caminho de Goiás e fugindo das tropas do governo, encontraram a população de um arraial, marchando como se estivesse numa procissão.
É preciso de saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapadão por lá vai terminando, despenha. Tem quebra-cangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som – um estranho. Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um homem se enforcou. Por aí, extremando, se chegava até no Jalapão – quem conhece aquilo? – tabuleiro chapadoso, proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho de filho. O menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah, quem oficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor: população de um arraial baiano, inteira, que marchava de mudada-homens, mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e a imagem da igreja – tendo até bandinha-de-música, como vieram com todos, parecendo nação de maracatu! Iam para os diamantes, tão longe, eles mesmo dizendo: “... nos rios...” (...) O padre, com chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com o plequeio das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável. Rezavam, indo da miséria para a riqueza. E, pelo prazer de tomar parte no conforto de religião, acompanhamos esses até à Vila daPedra-de-Amolar. (...) O cortejo dos baianos dava parecença com uma festa. No sertão, até enterro simples é festa (2001, p. 73/74).
“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...”
Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: – “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...” – ciente me respondeu (2001, p. 74).
Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos.
Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos. O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrelad’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana. Senhor vê, no escuro, um quebrapeito – e é ele mesmo, já risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele (2001, p. 75).
Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo.
Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor... (2001, p. 76).
O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.
De Araçuaí, eu trouxe uma pedra de topázio. (...) Isto, sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueles lados? De mim, conto. Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade com ilusão de desilusão. Vida muito esponjosa. Eu passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam. Dos de que a gente acorda devagar. O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. Pior foi quando peguei a levar cruas minhas noites, sem poder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia. Acho que eu também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e não queria. Nem para se definir calado, em si, um assunto contrário absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios da razão. Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra de topázio para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje ela se possui é em mão de minha mulher! Ou conto mal? Reconto (2001, p. 77).
O Santos-Reis era o homem que vivo fazia mais falta – ele estava viajando para trazer recado e combinação, da parte de Só Candelário e Titão Passos
Passava era uma tropa, os diversos lotes de burros, que vinham de São Romão, levavam sal para Goiás. E o arrieiro-mestre relatando uma infeliz notícia, dessas da vida. – “Ele era alto, feições compridas, dentuço?” – Medeiro Vaz exigiu certeza. – “Olhe, pois era” – o arrieiro respondeu – “e, antes de morrer, deu o nome: que era Santos-Reis... Mais não propôs dizer, porque aí se exalou. Comandante, o senhor creia, nós tivemos grande pena...” A gente, em volta, se consternava. Aqueles tropeiros, no Cururu, tinham achado o Santos-Reis, que morria urgente; tinham acendido vela, e enterrado. Febres? Ao menos, mais, a alma descansasse. A gente tirou chapéus, em voto todos se benzendo. E o Santos-Reis era o homem que vivo fazia mais falta – ele estava viajando para trazer recado e combinação, da parte de Só Candelário e Titão Passos, chefes em nosso favor na outra grande banda do Rio (2001, p. 79).
Nem olhei Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e despachou, em duríssimo: — “Vai, então, e no caminho não morre!”.
— “Agora alguém carece de ir...” — Medeiro Vaz decidiu, olhando salteado; amém! — nós apreciávamos. Eu espiei, caçando Diadorim, que ali bem defronte de mim se portava, mesmo segurava uma vara-de-ferrão, considerei nele certo propósito, de despique gandaiado. Apartei minhas vistas. Requeri, dei passo: — “Se sendo ordens, Chefe, eu gostava de ir...” Medeiro Vaz limpou a goela. A meio, eu estava me lançando, mas mais negaceando prosápia: duvidoso d’ele consentir; pelo bom atirador que eu era, o melhor e mor, necessitavam de mim, haviam de querer me mandar escoteiro, dizedor de mensagem? E aí se deu o que se deu — o isto é. Medeiro Vaz concordou! — “Mas carece de levar um companheiro...” — ele propôs. Aí em tanto eu não devia de me calar, deixar alheia a escolha do segundo, que não me competia? Ah, ânsia: que eu não queria o que de certo queria, e que podia se surtir de repente... E a vontade de fim, que me ora vinha ranger na boca, me levou num avanço: — “Sendo suas ordens, Chefe, o Sesfrêdo comigo vai...” — falei. Nem olhei Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e despachou, em duríssimo: — “Vai, então, e no caminho não morre!” (2001, p. 79).
O real não está na saída nem na chagada: ele se dispões para a gente é no meio da travessia.
Por que era que eu estava procedendo à-toa-assim? Senhor, sei? O senhor vai pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chagada: ele se dispões para a gente é no meio da travessia (2001, p. 80).
Diadorim me espreitava de longe, afetando a espécie de uma vagueza.
Mire veja o que a gente é: mal dali a um átimo, eu selando meu cavalo e arrumando meus dobros, e já me muito entristecia. Diadorim me espreitava de longe, afetando a espécie de uma vagueza. No me despedir, tive precisão de dizer a ele, baixinho: — “Por teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar Joca Ramiro...” A fraqueza minha, adulatória. Mas ele respondeu: — “Viagem boa, Riobaldo. E boa-sorte...” Despedir dá febre (2001, p. 80).
7 comentários:
Muito Bom, grande amigo adorei sua iniciativa.
Não soube logo quem era o autor do comentário. Só depois, procurando saber quem estava por trás da Hensite Makenting, é que vi que era você Douglas. Espero que esteja tudo bem contigo e com os negócios.
Um abraço,
Diogo
quero muito ler por inteiro este livro
Maravilha! encontrar esse ícone aqui, sem buscar, apenas por intuição. Amei e voltarei.
Muito bom! faz bem à gente! Parabens
quando tudo já foi dito, há de se procurar Guimarães e suas veredas.
Obrigada por seu blog!
Quero mais essas sentimentanças que igual é que sede não me abrasa. Diadorin mistério das vivanças. As nossas e tudo. Riobaldo é trilho.
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