Seleção de trechos do Grande Sertão: Veredas



ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.



Cavalgada - Carybé



O diabo existe e não existe

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto de especular idéia. O diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso... (2001, p. 26).



O diabo na rua, no meio do redemunho...

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum - é o que digo. O senhor aprova? (...) Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens, até nas crianças - eu digo. (...) E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho... (2001, p. 26).

Zé Bebelo: Seleção de trechos do romance


ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.




Raposa que demorou

Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. (...) Com Zé Bebelo, oi, o rumo das coisas nascia inconstante diferente, conforme cada vez (1994, p.16/p. 98).


Seguro já nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão.

Zé Bebelo – ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a natureza dá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo, dispor de tudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto. Seguro já nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão. Trepava de ser o mais honesto de todos, ou o mais danado, no tremeluz, conforme as quantas. Soava no que falava, artes que falava, diferente na autoridade, mas com uma autoridade muito veloz. (...) Senhor ouve e sabe? Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homem consegue intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não pode (1994, p.99).


O passado, para ele, era mesmo passado, não vogava.

No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dançava as danças, exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou topava à vara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviava musical. (...) Sem menos, se entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse: choveu, louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol. Gostava, com despropósito, de dar conselhos. Considerava o progresso de todos – como se mais esse todo Brasil, territórios – e falava, horas, horas. – “Vim de vez!” – disse, quando retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, não vogava. E, de si, parte de fraco não dava, nenhão, nunca (1994, p.100).


Aves do Grande Sertão: Veredas

Quero descobrir o que caracteriza
o vôo de cada pássaro,
em cada momento.

Não quero palavra, mas coisa,
 movimento, vôo.
(João G. Rosa)


Coruja Suindara (Tyto alba)

                                                                                  Foto: Dario Sanches



Coruja Orelhuda (Rhinoptynx clamator)

                                                                     Foto: Frank Wouters
“Que mesmo como coruja era – mas da orelhuda,
mais mor, de tristes gargalhadas;porque a suindara é tão linda,
nela tudo é cor que nem tem comparação nenhuma,
 por cima de riscas sedas de brancura.”

1. Diálogos com Guimarães Rosa (1965)

Entrevista conduzida por Günter Lorenz, em janeiro de 1965, 
no Congresso de Escritores Latino-Americanos.


Entrevista poveniente do site Tiro de Letra.


- Ontem, quando escritores participantes deste Congresso(1) debatiam sobre a política em geral e o compromisso político do escritor, você, João Guimarães Rosa, político, diplomata e escritor brasileiro, abandonou a sala. Embora sua saída não tenha sido demonstrativa, pela expressão de seu rosto e pelas observações que fez, podia-se deduzir que o tema em questão não era de seu agrado.

É verdade; agi daquela forma porque o tema não me agradava. E para que nos entendamos bem, digo-lhe que não abandonei a sala em sinal de protesto contra o fato de estarem discutindo política. Não foi absolutamente um ato de protesto. Saí simplesmente porque achei monótono. Se alguém interpreta isto com um protesto, nada posso fazer. Embora eu veja o escritor como um homem que assume uma grande responsabilidade, creio entretanto que não deveria se ocupar de política; não desta forma de política. Sua missão é muito mais importante: é o próprio homem. Por isso a política nos toma um tempo valioso. Quando os escritores levam a sério seu compromisso, a política se torna supérflua. Além disso, eu sou escritor, e se você quiser, também diplomata; político nunca fui.

- É uma bela opinião sobre a importância do papel do escritor: mas não será demasiado idealista? Foram discutidos muitos aspectos do cotidiano político; e além disso acho que um escritor não teria muitas probabilidades de êxito se, como você quer, tratasse apenas apenas do homem em geral, deixando de lado a vida diária desse mesmo homem.

Posso compreender isso e também sei que aqui provavelmente todo pensam de modo diferente do meu. Entretanto, me propus a dizê-lo claramente: tenho a impressão de que todos eles discutem demasiado, e por isso não conseguirão realizar tudo o que desejam. Perdem muito tempo, que empregariam melhor escrevendo. Mesmo supondo-se que tudo aquilo que dizem estivesse certo, então seria ainda mais acertado que cada um escrevesse sua opinião, em vez de expressá-la perante um auditório tão limitado. A palavra impressa tem maior eficácia e além disso estas discussões secas me entediam, pois são muito aborrecidas. Desconfio que só são feitas para alguns deles poderem se confirmar a si próprios sua importância e poderem assim se desligar de sua responsabilidade sem peso de consciência. Naturalmente isto não vale para todos, pois quando homens como Asturias falam pro domo, terão também suas razões. Mas você já observou que os que mais falam de política são sempre aqueles que têm menos livros publicados? Quando os têm, não são livros onde expressem ideias semelhantes às expostas aqui. Noto a falta de coerência entre suas obras e suas opiniões.